Hoje vamos falar de um tema controverso: o treino em crianças e adolescentes. Se iremos tentar desmistificar certos pontos do treino de força em jovens também falaremos do treino e do movimento, em geral, em todas as idades da infância e juventude.

Das maiores controvérsias envolvidas no treino com jovens é o receio de um abrandamento do processo de desenvolvimento e crescimento e o risco de lesões que poderão ter consequências mais graves quando em jovens. O curioso é que a literatura acaba por acompanhar estes receios e evoluir numa maneira positivista. Ou seja, até ao final do século XX a maior parte dos estudos experimentais sugeria a não-participação em exercícios de força por parte dos jovens pelo grande número de lesões, pela hipótese de fraturas nas placas epifisárias que são responsáveis pelo crescimento ósseo nos jovens e pelo receio de provocar detrimentos no crescimento. A verdade é que os estudos que avaliavam o número de lesões – muito elevado nestes trabalhos – não discriminavam o volume, intensidade e velocidade dos exercícios e planos utilizados e se eram supervisionados por um profissional qualificado que garantisse a técnica adequada. A partir dessa “era” as sugestões, retiradas de evidência científica, começaram a modificar-se.

Numa fase inicial observou-se que as lesões ocorriam normalmente com cargas acima do aceitável e quando o jovem não era supervisionado – ou seja o treino de força com adequado planeamento era completamente seguro – e evoluiu até ser recomendando por organizações como a OMS (Organização Mundial de Saúde) para a participação, por parte dos jovens, neste tipo de treino – quanto mais cedo melhor – com certo tipo de particularidades.

Antes de mais, um jovem (principalmente o pré-púbere) não é, de todo, um adulto em miniatura. Em termos fisiológicos (principalmente hormonais), físicos e mecânicos há enormes diferenças entre estes dois estádios de desenvolvimento. Como tal não poderemos planear um treino de maneira similar para a população pré-púbere e pós-púbere e as adaptações esperadas não serão em nada iguais. Outro ponto a ter atenção é a diferença entre idade biológica e a maturidade, como tal mais que a idade per si há que haver uma avaliação do nível de capacidade emocional do jovem e da própria experiência de treino antes da implementação do treino.

Primeiro, antes da maturação sexual do jovem, a presença de hormonas, como é caso da testosterona e estrogénio, são quase inexistentes e, como é amplamente sabido, são essenciais nas adaptações estruturais ao treino. Depois, em termos de aprendizagem motoras as considerações são também diferentes: tempo de aprendizagem, tipo e quantidade de feedback e modo de aprendizagem são considerações em ter em conta na abordagem no treino ao jovem.

Havia até a dúvida se o treino de força, visto as considerações hormonais, teria efeitos nos pré-púberes. A verdade é que apesar de não haver quase adaptações hipertróficas, existe aumento de força devido a uma maior coordenação motora e de adaptações neuromusculares, como é o caso do aumento de ativação de maior quantidade de unidades motoras e de firing neural.

Assim, conclui-se que o treino de força é seguro, benéfico e eficaz – e preferencialmente divertido – tendo em conta um planeamento que vise a maior oportunidade para os jovens realizarem o movimento, ou seja aumentar o número de repetições (não obrigatoriamente o volume pelo aumento de séries), trabalhar os movimentos fundamentais, com pouca carga e com aumento muito gradual da intensidade.

Curiosamente os índices de fatigabilidade dos jovem são mais baixos que nos adultos, ou seja, há uma recuperação mais rápida. Como tal os tempos de repouso podem ser alterados e ser aumentada a densidade de treino, também ela de uma maneira gradual.

Mesmo na criança, a partir dos 2 anos, é fundamental promover a melhorias destes padrões de movimento fundamentais – como o correr, saltar, equilibrar num pé, agachar, pontapear, arremessa e agarrar. É de extremo benefício não só em termos motores mas também psicológicos, emocionais e cognitivos. Como tal, é recomendado para crianças, mesmo de tenra idade, a introdução de uma hora de brincadeira, em movimento, não estruturada – principalmente num espaço exterior amplo, preferencialmente verde, com muitos instrumentos de brincadeira pequenos e portáteis – e outra hora de brincadeira em movimento estruturada e orientada por um adulto. Dessa maneira que percebemos a importância do movimento desde do momento em que o indivíduo reside num ambiente intra-uterino, na infância, puberdade e, na verdade, em qualquer fase da vida.

A quantidade de exercício e, principalmente, a qualidade de realização dos padrões fundamentais de movimento na infância são um fator que influencia a integração em atividades desportivas e físicas numa fase posterior da vida. Diz a literatura que tal fator se deve ao aumento da probabilidade de sucesso desportiva que leva à manutenção da prática desportiva e do exercício físico.

Assim começamos a perceber que aquilo influenciamos os nossos infantes a fazer no seu crescimento vai influenciar em grande escala aquilo que vai acontecer na sua vida adulta e no nosso desenvolvimento. Por exemplo, as crianças que começaram a caminhar mais cedo obtêm relações emocionais diferentes com a suas mães do que as crianças que caminham numa fase mais tardia – mesmo que esse momento mais tardio esteja anda dentro do intervalo expectável. Também os bebés que têm menor controlo postural têm uma redução da capacidade em resolver tarefas e, mais interessante ainda, os infantes que conseguiram a posição ortostática mais cedo obtiveram melhores resultados cognitivos, principalmente na memória a curto-prazo (ou de trabalho) aos 33-35 anos de idade. Assim há estudos que mostram uma forte relação entre capacidade motor grossa e desenvolvimento cognitivos em idades mais avançadas, especialmente nas áreas de processamento cognitivo e memória e a curto-prazo – sendo que ainda não é claro, embora haja uma tendência positiva, a correlação de exercício, movimento e/ou treino com o sucesso académico.

A oportunidade que os bebés têm, quando atingem os estádios de desenvolvimento motor mais cedo, de experienciar diferentes contextos e tarefas parecem ser fundamentais para este desenvolvimento social, emocional e cognitivo mais destacado.

Dessa maneira, temos que perceber que cada vez mais temos que pensar de como estruturar socialmente as oportunidades de exercício físico estruturado – trabalhando mais especificamente os padrões fundamentais de movimento – como nos infantários, escolas primárias e outros círculos sociais onde os bebés, infantes e jovens possam ter a oportunidade de brincar e treinar – duma maneira estruturada e não-estruturada. Fomentar a brincadeira, com movimento, em casa desde sempre é também um fator essencial a um desenvolvimento multidimensional adequado ditando, em muito, o desenvolvimento de certos parâmetros fundamentais – como de saúde, capacidade cognitiva, emocional e social – na vida adulta.

Concluindo, o treino é seguro e extremamente benéfico em todas as idades, tendo até se calhar um acréscimo de importância durante a infância. Há provas científicas que mesmo o treino de força de alta intensidade é seguro, mas não sugerido pelas implicações hormonais das crianças (até à puberdade), e por haver uma maior importância para a melhoria do padrão motor e variabilidade motora na criança, sendo que as adaptações são quase inteiramente de foro neuromuscular e não estruturais.

Grandes instituições mundiais ligadas à saúde e ao treino reforçam a ideia de implementação de oportunidades máximas para brincar (duma maneira estruturada e não-estruturada) e de treino dos padrões fundamentais de movimento e de força supervisionadas por um profissional qualificado e experiente na área do treino e com crianças, no mínimo 2 vezes por semana para garantir pelo menos a manutenção dos níveis ótimos de força.

Escrito por João Ferreira

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