O desenvolvimento dos sistemas energéticos na dor
Hoje a ideia será destacar uma tipologia de treino importantíssima para o controlo de dor (principalmente a nível crónico) dos nossos pacientes – o Desenvolvimento dos Sistemas Energéticos (DSE). Apesar do destaque nunca podemos descurar que um bom planeamento de intervenção terá que ter em conta a melhoria de todas as disfunções apresentadas pelo paciente, o treino de força e de mobilidade. Numa altura em que, felizmente, se começa a ver a classe de Fisioterapia cada vez mais inserida no conhecimento e praticabilidade do treino, como ferramenta fundamental para todos os nossos pacientes, é fácil esquecer-nos do DSE.
Como em tudo que implementamos, é de valor acrescido que saibamos especificamente o como, porquê e quando aplicar as nossas intervenções. Em termos científicos cada vez mais se pesquisa sobre a influência do DSE na hipoalgesia, mas apesar disso ainda não está bem claro quais os mecanismos exactos de tal mecanismo, tão pouco estará provado um protocolo com intensidade e duração definidas.
Primeiro sabemos que a dor crónica é considerada uma disfunção dos sistemas inibitórios e facilitadores endógenos do Sistema Nervoso Central. Percebemos então que as hipóteses dos mecanismos causadores da Hipoalgesia Induzida pelo Exercício (HIE) baseiam-se nas respostas do Sistema Nervoso, quer a um nível central como periférico. Pensa-se que o treino de DSE leva a uma activação de um complexo composto por duas estruturas corticais – substância cinzenta periaquedutal e o bolbo rostral ventromedial – aumentando a produção e libertação de várias substâncias. Estas – os opióides endógenos, canabinóides, endocanabinóides, GABA, glutamato entre outros – iniciam um processo denominado por dessensibilização periférica descendente. Há também evidência que as produções destas substâncias também poderão ser também aumentadas a nível local da região exercitada. Foi estudada também a activação bilateral da ínsula anterior, componente primária da rede neuronal da dor, com o DSE [1-8].
A corroboração destas hipóteses passa pela maior evidência da HIE na musculatura envolvida directamente no exercício, apesar de haver uma extensão deste mecanismo por todo o corpo. Desta maneira, é perceptível que os aumentos de inibidores nociceptivos periféricos estarão realmente em maior número após treino de DSE, não descurando a resposta a nível cortical [8-11].
Alguma cautela deve ser tida em conta quando falamos de dor – uma percepção tão multidimensional e dinâmica – acabando por ser difícil estudá-la com um único estímulo doloroso (normalmente os estudos sobre a influência do exercício na dor acabam por definir um tipo apenas de estímulo doloroso – de pressão, de temperatura, etc.). Também o tipo de hipoalgesia é importante: enquanto o threshold da dor (limite mínimo para início de sensação dolorosa) acaba por ser influenciado pela actividade dos nociceptores; a tolerância à dor tem um papel mais emocional e comportamental. Dentro de cada percepção dolorosa também acaba por haver diferentes fases: a 1.ª dor – sendo aguda e mediada pelas fibras nervosas A-delta; e a 2.ª dor – mais difusa e prolongada e mediada pelas fibras nervosas C. Num estudo que avaliou a HIE tendo em conta todas estas componentes acabou por descobrir uma maior influência na 2.ª dor – suportando a teoria da maior produção de inibidores nociceptivos endógenos pois estes acabam por ter uma maior interferência das fibras nervosas tipo C. Chega-se à conclusão, então, que a HIE é um fenómeno multifactorial em que cada sistema envolvido acaba por ter uma actuação específica nos diferentes inputs nociceptivos [3, 7, 8, 12-14].
A maior parte da evidência fala sobre os efeitos agudos do exercício sobre a tolerância à dor, em várias modalidades da mesma. Normalmente há diferenças significativas a nível da tolerância à dor, mas não ao seu threshold – embora haja também estudos que mostram benefício neste factor – levando a crer que não só há uma razão fisiológica de dessensibilização periférica, mas também factores psicossociais bastante envolvidos. Os benefícios que o exercício tem numa perspectiva psicossocial e emocional nunca poderão ser esquecidos. O facto de o threshold da dor acabar por não melhorar na maior parte dos estudos acaba por ser fundamentado, que é esse limite o mecanismo de segurança contra lesão. Se o limite for aumentado, por analgesia, poderá haver uma disfunção de tal ordem que os estímulos dolorosos assim não o sejam percepcionados mas que já possuam uma intensidade que leve a lesão tecidual [2, 3, 8].
Também alguma informação que clarifica os efeitos crónicos do DSE na dor crónica começa a aparecer. Numa primeira fase, compreendemos que as capacidades físicas são fundamentais na percepção e tolerância à dor baseando-nos em estudos que comprovam que os atletas, os indivíduos com maior nível de actividade física e aqueles que se consideram mais activos fisicamente têm uma tolerância maior à dor. A ciência comprova a eficácia de programas de DSE em várias populações – saudáveis ou com dor crónica de variadas tipologias – na tolerância à dor [2, 4, 11].
Estudos com um programa de DSE com a frequência de 3x por semana, e uma duração total de 6 semanas, levaram a uma melhoria na tolerância da dor, em indivíduos saudáveis, de 20,3% relativamente a estímulos nociceptivos isquémicos [2].
Em população sintomática, como os que sofrem de enxaquecas recorrentes, o treino de DSE levou a melhorias da condição, havendo sempre uma ressalva sobre o controlo das intensidades que terá de ser bastante individualizado. Até a eficácia do caminhar (ESD de baixa intensidade) foi estudada em pacientes com dor crónica, com benefícios efectivos e seguros. Os pacientes de dor lombar crónica beneficiam deste tipo de exercício pois melhora efectivamente os níveis de percepção de dor aumentando simultaneamente a função física e emocional [7, 14-16].
Aparentemente o aumento da tolerância à dor, associada aos efeitos crónicos do treino de DSE, acaba por estar muito associada à melhoria das capacidades físicas dos sujeitos em estudo, como é exemplo um estudo que visa os utilizadores de cadeira de rodas manuais com dor no ombro, onde uma melhoria de 10 pontos num questionário de dor é associada a uma melhoria de 8% do VO2peak [17].
Já na dor neuropática, com a natação como modalidade de exercício estudada, além da melhoria da sensibilidade mecânica (que se manteve até 4 semanas após término de treino) levou a alterações benéficas nos marcadores da patologia, que normalmente estão ligados à dor. Neste caso houve melhorias nos factores de crescimento nervoso, no factor neurotrófico derivado do cérebro e aumento na expressão do gânglio da raiz dorsal, assim como a reversão da hiperactividade dos astrócitos e dos microgliócitos, normalmente presentes em lesão nervosa. Na mesma população, com exercício, houve melhoria na EVA (Escala Visual Analógica) de 17%, vendo-se benefício da implementação de um protocolo de DSE neste tipo de pacientes [18, 19].
Em casos de Fibromialgia, a implementação de um programa domiciliário de DSE mostra efectividade na dor, qualidade de sono, função física e emocional [6, 12, 20].
Em sobreviventes de cancro da mama existe uma incidência de 50% de dor induzida por artralgia. A implementação de um programa (neste caso que incluía, para além do DSE, o treino de força) levou a melhorias de 29% na dor comparativamente aos 3% relacionados com os tratamentos convencionais. Também a severidade e interferência da dor nas actividades diárias acabaram por melhorar significativamente [21].
A síndrome de dor regional complexa tipo I (SDRC-I) é bastante presente em pacientes pós Acidente Vascular Encefálico. Não obstante tiveram, com um programa de DSE, um alívio avaliado em 89,9% e uma reversão dos sinais e sintomas normalmente associados a esta síndrome [22].
Esta tipologia de treino acaba por ter até influência ao nível de condições de dor crónica pós-operatória. Em casos de próteses da coxo-femural e joelho, a implementação de um programa de DSE pré-operatória baixou significativamente a sensibilidade à dor e foi associada ao alívio da dor após 6 meses de cirurgia, baixando drasticamente uma incidência notória de dor crónica nestas situações [23, 24].
Apesar disto, numa opinião pessoal sustentada em evidência científica, não podemos deixar de incluir, como fundamental, o paciente no centro da intervenção pela educação. Mostrar e explicar o porquê e quais os mecanismos envolvidos no treino proposto para o seu problema sintomático melhora substancialmente a eficácia no mesmo, como alguns estudos já comprovaram. Após um período de 2 anos após início de intervenção de um programa de DSE e educação mostrou-se eficaz em mais de 31,2% que uma intervenção convencional [25, 26].
A maior questão – e que realmente ainda não está respondida com clareza – é a duração e a intensidade a que deve ser feito o DSE. Estudos que tentaram definir uma intensidade específica chegaram à conclusão que o exercício teria que ter uma intensidade, mínima, entre 60%-75% VO2máx para que houvesse uma repercussão positiva ao nível da hipoalgesia. O mesmo autor mostra que em relação a hipoalgesia, quanto maior a intensidade mais efectiva a mesma, concluindo também que as intensidades moderadas acabam por ter uma HIE mas apenas localizada, não activando os mecanismos centrais de inibição de dor [8].
Se normalmente o que está descrito que o mais eficaz são as intensidades vigorosas, há casos em que tal não se confirma. Em patologias com deficit de inibição central de dor – como é o caso de fibromialgia e outras – as intensidades vigorosas acabaram por se mostrar contraproducentes no controlo da dor. Assim, as intensidades moderadas acabaram por serem as mais eficazes, por aumentarem a actividade bilateral da ínsula anterior (estrutura que disfuncional caracteriza a fibromialgia). Para aumentar a obscuridade neste campo, um estudo reviu que DSE de baixa intensidade acabava por proporcionar um aumento agudo da dor, por facilitação do sistema somatossensorial e assim a sensibilização ascendente [2, 3, 6, 8, 9].
Na verdade, é fundamental rever conceitos como a influência de determinado exercício na dor e não apenas cargas. Desta maneira, a partir de um programa baseado na intensidade (RPE) e dor percepcionada, conseguiremos individualizar e personalizar cada plano de treino a cada indivíduo de maneira a aumentar a eficácia do mesmo, sem levar ao abandono por parte do paciente.
Em jeito de conclusão, percebemos então que o treino de DSE deve ser incluído com outras tipologias de treino – como o treino de força, nas suas várias vertentes, e de mobilidade – pela sua efectividade e segurança, em todas as populações. Conseguimos apontar hipóteses neurofisiológicas, neurovasculares, neuroinflamatórias e sociocognitivas para a influência do DSE na dor crónica. Na questão dos protocolos mais eficazes ainda não há definição, pelo que se em indivíduos saudáveis quanto mais intenso for o exercício maior é a HIE, em casos de disfunção inibitória central relativamente à dor aparentemente poderá ser contraproducente, recomendando-se assim uma monitorização e controlo de intensidade baseada na percepção do paciente. Voltando novamente a ressalvar a importância que a educação tem na potenciação de resultados em qualquer tipo de intervenção, incluindo esta.
1. Galdino, G., et al., The endocannabinoid system mediates aerobic exercise-induced antinociception in rats. Neuropharmacology, 2014. 77: p. 313-324. |
2. Jones, M.D., et al., Aerobic Training Increases Pain Tolerance in Healthy Indivudals. 2014, American College of Sports Medicine: Medicine & Science in Sports & Exercise. p. 1640-1647. |
3.Naugle, K.M., et al., Intensity Thresholds for Aerobic Exercise–Induced Hypoalgesia. Medicine and science in sports and exercise, 2014. 46(4): p. 817-825. |
4. Naugle, K.M. and J.L. Riley, Self-reported Physical Activity Predicts Pain Inhibitory and Facilitatory Function. Medicine and science in sports and exercise, 2014. 46(3): p. 622-629. |
5. Nijs, J., et al., A Modern Neuroscience Approach to Chronic Spinal Pain: Combining Pain Neuroscience Education With Cognition-Targeted Motor Control Training. Physical Therapy, 2014. 94(5): p. 730-738. |
6. Ellingson, L.D., et al., ExerciseStrengthens Central Nervous System Modulation of Pain in Fybromyalgia. 2016, Brain Science. |
7. Irby, M.B., et al.,Aerobic Exercise for Reducing Migraine Burden: Mechanisms, Markers, and Models of Change Processes. Headache: The Journal of Head and Face Pain, 2016. 56(2): p. 357-369. |
8. Micalos, P.S. and L. Arendt-Nielsen, Differential pain response at local and remote muscle sites following aerobic cycling exercise at mild and moderate intensity. SpringerPlus, 2016. 5(1): p. 91. |
9. Vaegter, H.B., G. Handberg, and T. Graven-Nielsen, Similarities between exercise- induced hypoalgesia and conditioned pain modulation in humans. PAIN®, 2014. 155(1): p. 158-167. |
10. Karlsson, L., et al., Intramuscular pain modulatory substances before and after exercise in women with chronic neck pain. European Journal of Pain, 2015. 19(8): p. 1075-1085. |
11. Stolzman, S., et al., Pain Response after Maximal Aerobic Exercise in Adolescents across Weight Status. Medicine and science in sports and exercise, 2015. 47(11): p. 2431-2440. |
12. Ellingson, L.D., et al., Does exercise induce hypoalgesia through conditioned pain modulation? Psychophysiology, 2014. 51(3): p. 267-276. |
13. Samut, G., F. Dinçer, and O. Özdemir, The effect of isokinetic and aerobic exercises on sérum interleukin-6 and tumor necrosis factor alpha levels, pain, and functional activity in patients with knee osteoarthritis. Modern Rheumatology, 2015. 25(6): p. 919-924. |
14. You, T., et al., Helping elders living with pain (help): a randomized controlled pilot study. Innovation in Aging, 2017. 1(suppl_1): p. 662-662.